Conversa com Mia Couto e Agualusa


Numa segunda feira, dia 10 de outubro de 2011, fui para Paris para ver e ouvir Mia Couto. De brinde, digamos assim, conheceria pessoalmente Agualusa. De Mia Couto li quase tudo. De Agualusa ainda falta muita coisa, mas do que li (e vi, porque já fui ver um texto seu encenado) gostei. Me orgulho de tê-los como escritores em lingua portuguesa para poder indicar boas e recentes leituras aos meus amigos que falam ou se interessam em aprender português. Para esse encontro ficar completo eu levaria valter hugo mãe. Diria que essa é minha tríade lusófona favorita.
A cada um foi dada a missão de falar sobre seu livro, mas visivelmente eles não pareciam muito à vontade para tal. Mas como era o lançamento das traduções de Jesusalém e Barroco Tropical em francês, algo teria de ser dito sobre os livros.



AGUALUSA E O BARROCO TROPICAL

Agualusa começou a conversa, dizendo que aquele foi o seu livro mais complexo, talvez o melhor e sem dúvido o que lhe deu mais trabalho. Buscou descrever a exuberância de Luanda numa estrutura que o suportasse.
O livro é então a descrição de Luanda em 2020 (como os desenhos que sonhavam o futuro, feitos por um personagem). Mas o futuro de Luanda muito se aproxima com o presente de várias cidades. A epifania dos contatos e cruzamentos. A primeira estrutura marcante é a Termiteira, prédio em semi-deconstrução, parado no tempo e nas estruturas sociais. Nele vivem todas as classes sociais, cada um num andar a que corresponde sua conta bancária e com as vantagens que isso possa acarretar.
Há duas vozes que num diálogo cego nos mostram todos os devaneios de se viver numa cidade onde traição e tradição se confundem (como o quer Bartolomeu para polemizar). Os narradores são amantes (traição?) e cada um se debate com alguns problemas. Kianda, a cantora, manifesta sobretudo seu lado pessoal e suas angustias relacionais. Bartolomeu, o escritor, nos dá mais a ver o conflito de estruturas da sociedade. O engessamento do poder na constante troca de interesses e favores que desde a independência pouco se alterou  (tradição? Lá no Braziu Tropical ainda é assim ). Temos um manicômio natural – onde se trata os “loucos” da maneira tradicional. Nesse lugar reside o grande mistério do anjo negro, anjo que vive no imaginário de alguns poucos que sabem de seus poderes.
Esse “elucidário” em forma de romance nos oferece com graça e bom humor belas observações do evoluir de uma sociedade, da sua marcha ao futuro sem muito se preocupar com o passado (e não se pode construir um futuro sem passado, segundo Bartolomeu), por isso temos o que temos. (Sempre se disse que esse tal Braziu é também um país sem memória.)
Mia Couto disse que o livro é o retrato de algo que não tem moldura e demonstra a incapacidade de com apenas uma dimensão o olhar captar os vários tempos e mundos, por isso essa escrita alucinada. Nos lembrou que barroco tropical foi uma ideia inventada fora da Africa, pois quem ali vive não vê nada de Barroco. O livro falaria então de Luanda e do Mundo, da fragmentação de imagens e da multiplicação de mensagens. Mas o romance de Agualusa que Mia Couto prefere é “O vendedor de passados” e eu estou de acordo. E disse à Mia Couto que talvez fosse seu preferido pois era o que mais se aproximava à sua escrita e temas. Eles riram-se e disseram “questão de egos!”.   

MIA COUTO E JESUSALÉM

Dia 10 foi um dia marcante, pois me inscrevi no doutorado e conheci Mia Couto e falamos do livro que vou estudar. Pude perguntar sobre a minha ideia.
Para Mia Couto o grande assunto de Jesusalém é o tempo. Essa doença que nos impede de dar acesso ao nosso passado. É assim que Silvestre Vitalício, o pai de família que em meio à uma guerra civil, decide abandonar o mundo e o tempo passado. Foge para um local sem história nem geografia, onde instala a solidão, o esquecimento e o silêncio. Para isso deve criar uma mentira: a de que o mundo acabou e eles (seus dois filhos, seu braço direito e o tio Aproximado) são os seus únicos sobreviventes. Moçambique passou por 16 anos de guerra civil e perdeu 1 milhão de seus 21 milhões de habitantes. A decisão silenciosa é de esquecer. Assim como no livro, esse esquecimento é falso e mentiroso: a necessidade de se recriar uma nova vida para apagar o passado.
É como recomeçar a história com o medo eterno de que Deus venha e retire uma costela de algum Adão: as mulheres são assuntos proibidos, sinônimos de putas, e ninguém deveria nem pensar nem sonhar nem falar delas.
O mundo acabou antes do fim do mundo. Reflexo da incapacidade de sermos donos de nossa existência e de um sonho que seja nosso. Alusão à impossibilidade de fazer um regresso e tomar posse de nosso tempo. Aí reside a semelhança entre o “Vendedor de Passados”e “Jesusalém” o retrato dos países é quase impossível, pois o resgate da memória é fragmentado. A criação de heróis, guerras, tudo é ficção, é venda de passados para construir um futuro que seja novo e não memória reflexo (a carga de um passado violento é tão forte que não pode-se sonhar realmente um futuro).

Agualusa, ao comentar o romance, nos falou sobre a língua de Mia Couto, a sua subversão que nos permite enxergar uma língua que não víamos. Reconhece Guimarães Roa e Luandino Vieira nessa criacionices, mas Mia traz algo mais luminoso e sonoro numa relação de diversão e namoro com a língua. O que antes poderia esconder a arte de contar de Mia Couto, pois as pessoas se perdiam em devaneios com os jogos de palavras, em Jesusalém houve o afinamento. A linguagem foi depurada e a história ficou mais visível. Nele vemos a força e a vontade de renascer (conta-nos uma anedota que se passou quando com sua filha menor passam diante da maternidade onde ela nasceu e lhe diz: Filha, você nasceu aqui, e ela vendo aquele lugar lindo e grande “quero nascer de novo” é o desejo de Couto e Agualusa, a vontade de refazer o mundo).


Jesusalém é sem dúvida um dos meus livros preferidos, cada página é como ter a ilusão de abrir um presente de natal como quando somos crianças. Vontade de ir sonhar com esses personagens, porque em Mias Couto os personagens são as histórias. 

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