A melhor técnica da coleção de Tavares


Essa foi a segunda chance dada ao Gonçalo M. Tavares e ele foi aprovado. Aprender a rezar na era da técnica é um livro que alcança os resultados que Jerusalém apenas almejou/projetou.

Mais uma vez a escrita é curta, matemática, precisa e os capítulos funcionam muito bem, aspergindo a história em pequenas doses de calculismo. Gosto do ritmo impresso à história. Uma maneira de leitura muito boa e adequada à ansiedade da velocidade.



O personagem principal é calculista, frio e demasiado umano (tirei o h da palavra para criar uma nova categoria de homem). Lenz Buchmann (sobrenome do personagem de “O vendedor de passados” - curioso dois livros portugueses utilizarem esse sobrenome na mesma época de escritura ademais...) é um controlador mental, não admira o humanismo de maneira alguma e considera fracos os que têm medo, aprendizado da ditadura familiar de seu pai. Nada nele inspira compaixão por outro ser humano: como médico ele é apenas um técnico, com a precisão da mão que orquestra em mínimos movimentos até salvar o paciente. Ele é dos melhores em sua categoria e sempre pensa que um desvio no caminho da sua mão é a rota da morte. Ele tem a paciência e a determinação certas para sempre sair-se bem. Lenz tem repugnância aos que pensam que ele é bom por salvar vidas, a moral não tem nada a ver com a técnica de sua profissão. Ele é apenas um artesão do bisturi, nada além. Ele tem nojo dos mais fracos, adora os dominar mentalmente. A morte de seu irmão, Albert, um fraco que não merece o sobrenome que leva, é o que desencadeia a mudança de sua vida. A partir desse momento ele se dedicará a operar a cidade, assim o reconhecimento de suas qualidades não se reservará a poucos, mas a todos os cidadãos. As pessoas mudarão seu comportamento ao vê-lo, temerão o seu poder. Ele inspirará medo aos fracos que dominará. Imporá seu triunfo do mais alto patamar do domínio. Até seu aliado político é constante alvo de seu extermínio a-moral de relações, não passa de um instumento frágil a ultrapassar.

Ele tem claro para si o tipo cruel que representa na sua intimidade mental, mas a imagem que o espelho reflete aos passantes é uma vez mais de um homem virtuoso e inteligente. Até sua mulher é tratada com um desdém extremo sem o perceber. Ele tem fascínio pelos loucos, que são os detentores da libedade total e só são loucos porque capazes de executar dois atos extremos ao mesmo tempo.( Aí o eco com Jerusalém e o tema da loucura. Lembramos também do médico, que almejava esse truinfo na sociedade com seu estudo e que cai em desmerecimento. De sua mulher considerada louca e do hospício onde estão outros personagens).

Uma certa moral cristã pousa no livro: o personagem parece ser castigado pela doença que o tornará o seu próprio fantoche, vítima da era da técnica em que descobre-se que é a doença que domina o paciente, sendo ele apenas o objeto dessa sentença, o sujeito que antes era oculto revela-se para anular seu objeto. É a natureza que o homem pensava dominar pela técnica do homo faber que alerta que a história não é bem essa. Resta aprender a rezar? Ele escuta o chamado que vem das luzes da televisão. Guarda muito ódio dentro de si e a frustração de não conseguir igualar seu fim ao de seu pai.  

Recomendo a leitura desse quarto e último volume do Reino da série de livros negros. Não li os dois primeiros, mas sei que esse ganhou vários prêmios, pode ser que seja o melhor. Melhor que Jerusalém é.


Entrevista com Tavares da livraria Saraiva:



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