Os sonhos da osga tigrada


O vendedor de passados, livro de José Eduardo Agualusa, escritor lusofone entre Luanda e Lisboa é um belo retrato da memória. Sobre a construção da memória de alguém engendrando a reconstrução memória de um povo e de um país. É uma sátira daquilo que a recente descolonização provoca nos destinos. Um país que deve esquecer as mazelas do colonialismo, mas que se defronta com os problemas do poder permeado de brigas étnicas, que deve esquecer que passou pelo comunismo, mas que possui seus símbolos e hábitos ainda vivos em muitas pessoas, em suma, ao se refazer o passado de alguém, se modifica pouco a pouco a história de um país.
Um negro angolano, que por ventura é albino, nascido em berço livresco, ninado sobre As Relíquias de Eça de Queiroz é o personagem principal da historia. Sua missão é a de reescrever passados: “Assegure aos seus filhos um passado melhor” diz seu cartão. Seu fiel companheiro, escutador de histórias, é uma osga, que habita e vive a casa onde moram. É quem melhor tem percepção dos fatos, pois tendo sido humano (cujo pior pecado foi não amar), sua memória desse mundo o ajuda a entender outros passados e a sonhar possíveis encontros. Seus sonhos são as explicações que o leitor busca. O fim do livro fala exatemente dessa diferença entre ter um sonho e fazer um sonho. A osga, Félix e cada personagem ao aceitar um novo passado, estão sempre a fazer um sonho. A memória inventada por Félix, em cada meandro, possibilita a seus personagens viver uma nova vida, esconder o seu duplo, o original, em detrimento da nova verdade, a criada por Félix Ventura.
O livro começa muito bem, no clímax com o personagem a ser criado e uma mala com 5 mil dólares. José Buchmann nasce em busca de mais dados de seu passado. Cria alicerces reais para a fantasia criada por Félix. Há também a amada de Félix, Ângela Lúcia, a única mulher que não recuou frente a sua albinice. Na história aparecem um político tentando mudar seu passado para encontrar alguma nobreza, gente tentando ter um passado mais simples e assim vamos acompanhando o dia a dia do albino e a relação que ele estabelece com alguns clientes.
O personagem que vai mudar o rumo da história é aquele que nos faz perceber o problema de se alterarem passados, da falácia que se constrói com esse recurso que a maioria dos políticos busca. Ele nos alerta a possibilidade privilegiada que as ex-colônias africanas têm em poder alterar e construir sua história, baseada mais em ficção para a justificativa de sua realidade. E mais, como esse continente, do Saara para baixo, foi dominado sempre pelo híbrido real/ficção. Esse personagem vem chamar a memória original.




Mas, aí é que o livro começa o seu “declínio”. Eu não creio ser necessário tal final, muito cliché talvez, sem portanto acabar com o interesse e a beleza da obra. É interessante a historia, conforta saber os seus desenlaces, mas não era necessário. Não porque a realidade proposta ultrapasse a ficção, mas porque tudo encontra uma explicação e essa explicação é que cai no clichê. Eu preferiria um outro final, um que pudéssemos buscar signos na realidade da ficção para realizá-lo.
Devo ressaltar o personagem do professor Gaspar, que com suas particularidades linguísticas, não permite aos seus ex-alunos se esconderem por muito tempo. Ele é aquele signo indelével do passado, algo que nos traz de volta à realidade por um descuido. Um personagem, por mais que altere seu passado, não poderá ocultar ou deixar de reconhecer um dos alunos de Gaspar. Há algumas palavras que os denunciam, pois Gaspar se comovia com o desamparo de alguns vocábulos e tratava de utilizá-los como forma de resgate: frouxel em lugar de edredom, por exemplo, estrofião no lugar de sutiã. É um exemplo daquilo que Carlo Ginsbourg defende como arma para descobrir-se falsários: os detalhes!

Finalmente, o livro é de grande interesse e prazer de leitura. O recurso à memória é utilizado e discutido de maneira velada para satirizar a condição em que se encontra a história de um povo. Uma bela experiência que nos remete à outros autores de língua portuguesa de ex-colônias. Recomendo a leitura!
Aqui uma entrevista com o autor no Entrelinhas da TV Culura:

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