O matadouro de Vonnegut

Na entrevista que fiz com Rodrigo Fresán, ele insistiu várias vezes que o melhor livro ou ao menos o livro que ele mais releu e que mais o ensinou é “Matadouro 5” do norte-americano Kurt Vonnegut. Tendo gostado de suas obras e sendo a última que ele escreveu, El fondo del cielo, uma espécie de homenagem a seus mestres não demorei em ler o tal livro.


O primeiro capítulo nos introduz sobre o fazer da história, o porque escrevê-la. Vonnegut foi lutar na segunda guerra mundial e estava em Dresden quando a cidade foi destruída por bombardeios, sendo que ela não era um alvo militar e o ataque matou 135.000 pessoas. Ninguém falou muito do acontecido, dando mais relevância para Hiroshima, por exemplo. Ele sentia uma certa obrigação de relatar os horrores de ver uma cidade devastada pelo fogo como ele viu, e em 1971 lançou um dos romances que obtiveram maior sucesso na geração da contra-cultura americana, sendo ele um autor incontestável dessa geração.
O livro é o relato da vida de Billy, um personagem que muitas vezes dividiu espaços com Kurt durante a guerra e por isso mesmo, em algumas passagens, o narrador diz: esse sou eu ou fui em quem fiz ou falou isso.


O livro num impulso metalinguístico discute sua importância com muita ironia: fazer um livro sobre a guerra para que não haja mais guerras é o mesmo que fazer um escrito sobre o derretimento da calota polar: tanto um quanto o outro são inevitáveis e não será um romance algo capaz de impedi-los.

Vonnegut é conhecido por seu humor negro e por escritos de ficção científica, mesmo que nem um nem outro sejam o bastante para defini-lo. Eu não seria alguém que leria, a priori, um livro de ficção científica. Mas o dele é diferente, mesmo que haja extraterrestres e outro planeta. Tudo o que ocorre é devido às falhas que existem no tempo. E essa ideia é tão bonita e tão bem executada no livro que é o que lhe dá ritmo, interesse e originalidade. No início as falhas no tempo aparecem para amenizar cenas de cruezas extremas, de sofrimento. É graças aos habitantes de Trafalmador que ele pode fazer viagens no tempo e visitar momentos de sua vida em que ele sente prazer ou que são ressonâncias positivas daquilo de negativo que ele está sofrendo num determinado tempo presente. Por isso ele se evade, dando a continuidade de sensações, mas invertendo o sofrimento em prazer (por exemplo, um banho gelado dado em conjunto nos quartéis da segunda guerra é interligado com um banho seu na infância e a sensação da água e da mão sobre o seu corpo).
A história é construída de maneira um pouco fragmentar sem perder seu vínculo. Nós compartimos com o personagem as falhas no tempo e vamos viajando com ele, revivendo as experiências da vida de Billy. Nada acaba, tudo está preso no tempo num eterno continuum, por isso pode-se ir ao passado, ao presente ou ao futuro. Aliás, essas noções acabam sendo muito vagas, pois estando sob o jugo dos trafalmadorianos que não têm a noção de tempo (e tampouco a de livre arbítrio) . Eles consideram que sempre existe o perpétuo instante do que fazemos, não se pode saber de forma alguma o que é o presente. Para entendermos melhor os trafalmadorianos fazem a comparação com a fotografia dos terráqueos. Elas imobilizam um instante no tempo e sempre que quisermos podemos olhá-las, porque elas não se alteram. São instantes contínuos. No mundo dos trafalmadorianos somos nós que escolhemos os instantes de nossas vidas que queremos visitar. Billy visita sua morte várias vezes, por exemplo. Ele, consciente disso, tenta alertar a todos por uma cadeia de rádio que ele descolou do tempo e que pode saber de todo o passado ou futuro de sua vida, mas todos o tomam por louco. A discussão do momento era o fim do romance e sua intervenção não tinha qualquer importância.
No planeta de Tralfamador, Billy vive em um zoológico onde os habitantes podem vê-lo viver. Um ambiente terrestre é reconstituído em uma espécie de jaula onde ele vive e mais tarde se encontra com outra “prisioneira”, uma atriz com quem terá um filho e tudo isso é motivo de festa e interesse do povo extraterrestre. Uma espécie de TV onde se vê a realidade ao vivo dos terráqueos aprisionados. Uma das coisas mais interessantes do planeta são seus livros que são um amontoado de símbolos que são lidos simultaneamente e não em sequência, não há começo nem fim, somente o vislumbre e a admiração de um momento a ser contemplado em conjunto.

Sem dúvida muito do livro de Fresán bebe de Vonnegut, mas isso é assunto de outro post.

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